Caríssimo leitor, se esta carta se encontra nas suas mãos neste momento, significa então que já não me encontro entre os vivos. Este simple pedaço de papel, juntamente com outros objectos que me pertencem, ou costumavam pertencer, foi deixado pela minha pessoa dentro de um baú, em que a combinação é a idade da minha morte, supondo, no entanto, que o excelentíssimo senhor leitor desta minha humilde redacção sabe já este facto, visto ser portador da mesma. Neste momento, sinto-me cada vez mais fraco e pressinto a aproximação do fim. Aqui, em Paris, uma súbita preocupação surgiu: será que serei lembrado após a minha morte? Assim, deixo aqui algumas pistas daquilo que foi a minha vida para que vós possais dizer ao mundo quem foi Eça de Queirós e aquilo que a sua curta existência trouxe de útil para o mundo.
José Maria Eça de Queirós, assim fui baptizado após o meu controverso nascimento a 25 de Novembro de 1845, em Póvoa do Varzim. De um lado, o meu papá, José Maria Teixeira de Queirós, magistrado judicial. Do outro, a mamã, Carolina Augusta Pereira d’Eça. Devido às condições ilegais da relação de meus pais, fui, precocemente, afastado destes, e levado com tenra idade para junto de meus avós paternos, onde estes habitavam perto de Aveiro.
Após a minha avó materna sucumbir, estava eu com quatro anos então, deu-se, por fim, o casamento do pai e da mãe. Todavia, este facto não alterou o facto de ser considerado filho ilegítimo pela sociedade, permanecendo, assim, afastado daqueles que me deram vida.
Tinha dez anos e uma vida inteira pela frente, quando fui internado num Colégio no Porto, o Colégio da Lapa, onde permaneci até ao momento em que ingressei na Faculdade de Direito de Coimbra, em 1881. Aí, conheci os caros Teófilo Braga e Antero de Quental. Em 1866, após concluir os estudos académicos, parti para Lisboa onde, apesar de exercer funções relacionadas com o curso que tinha acabado de concluir, não sentia um grande futuro em relação à prática desta profissão. Assim, em 1867, parti para Évora, onde fundei um modesto jornal “O Distrito de Évora”. Alguns meses mais tarde, mudei-me novamente para Lisboa, onde passei a colaborar com “A Gazeta de Portugal”.
Em 1869, tive a estupenda oportunidade de viajar pelo Egipto e pela Palestina, dois inspiradores países, onde cheguei ainda a assistir à inauguração do Canal do Suez. Nessa viagem, fez-se acompanhar comigo o ilustre conde de Resende, que me apresentou a sua belíssima irmã, Emília de Castro Pamplona, com quem, para minha grande satisfação, viria a casar, já no ano de 1886. O ambiente, as pessoas, o modo de vida, as recordações dessa jornada foram tantas e tão enriquecedoras que me foi possível, através da memória, redigir o livro O Egipto, onde podemos encontrar essas mesma impressões vividas durante todo o percurso e, ainda, criaram o ambiente propício para a realização do romance A Relíquia.
No mesmo ano, juntamente com o meu já conhecido e companheiro Antero de Quental e Batalha Reis, desenvolvemos a forma de Carlos Fradique Mendes, facto que, algum tempo mais tarde, viria a encarar como um alter-ego.
Em 1870, juntamente com um antigo docente de Francês do Colégio que frequentei enquanto rapaz, Ramalho Ortigão, escrevi alguns folhetins a que, juntos, apelidámos de O Mistério da Estrada de Sintra. A saudável sociedade prolongou-se por mais algum tempo, culminado com a publicação da crítica social e política As Farpas.
Já em Lisboa, reencontrei, mais uma vez, Antero de Quental e, em conjunto com outros estudiosos, formamos o Cenáculo, de onde surgiram as Conferências de Casino. Naquela altura, sentia-se a grande revolta de vários indivíduos, onde o Ultra-Romantismo e a Estagnação do País eram contestados. Pelas ruas, era cada vez mais notável a presença de insatisfeitos com a situação que o país atravessava. Cheguei, ainda, a ser porta-voz de uma das conferências do casino, mais concretamente a quarta, onde foi discutido o realismo como nova expressão de arte. No entanto, a crescente insatisfação do poder monárquico acerca desta revolta fez com que o Governo, movido pelas acusações de ofensa às leis da monarquia e ataque a questões como o Estado e a religião, proibisse as Conferências e encerrasse o casino.
Apesar desta proibição, esta questão terminou com a vitória dos ideais preconizados pela nossa geração, provocando, assim, uma completa renovação cultural, com a acentuação do papel de intervenção social que a literatura deve ter, pondo de parte a retrogradação do ultra-romantismo e dando espaço ao impulsionamento do realismo.
Em 1870, mais um desafio, o cargo de administrador do Concelho de Leiria que, com o qual, me permitiu recolher informações que para conceber o ambiente que um dos meus livros iria ter, O Crime do Padre Amaro.
Entrementes, em 1872, fui nomeado Cônsul em Havana que, na altura, era uma colónia espanhola. Fiz uma duradoura viagem pelo Canadá e Estados Unidos, na qual escrevi o conto Singularidades de uma Rapariga Loura e criei a primeira versão de O Crime do Padre Amaro.
Já no ano de 1874, fui transferido para Newcastle, onde escrevi O Primo Basílio, e onde surgiram as primeiras ideias das quais viriam a surgir Os Maias, O Mandarim e A Relíquia.
Catorze anos depois, já casado, fui enviado para o Consulado de Paris, onde publiquei ainda, em jornais, A Correspondência de Fradique Mendes e A Ilustre Casa de Ramires.
Entre 1889 e 1892, tive ainda a oportunidade de criar e dirigir a “Revista de Portugal”.
Hoje, permaneço neste muito último destino, a cidade do amor, Paris. Sinto que, muito em breve, vos deixarei. Sei, bem dentro de mim, que amanhã será a última vez que verei a luz do sol, que poderei pegar numa caneta e escrever aquilo que me vai na alma. Porque a Literatura é tão bela! Assim, caro leitor, suponho que se encontra no dia 16 de Agosto de, vamos lá ver, 2008, no dia do 108º aniversário da minha morte, o código do cofre onde irei colocar esta pequena biografia. Imagino a vossa cara quando recebeu uma carta em sua casa com a localização precisa do baú. Deixo, portanto, tudo preparado para que este meu pequeno tesouro vá parar às mãos certas, no dia certo. E que melhores mãos senão aquelas onde corre o mesmo sangue que o meu?
Resta-me agora a vista da cidade tão linda, que me há-de encher de alegria nestes últimos, mas preciosos, momentos e uma folha de papel, onde escrevo estas últimas palavras, as derradeiras.
15 de Agosto de 1900
Eça de Queirós.
Rita.
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