
Morri. Do nada. Morri, e agora estou morta. Estou demasiado pálida, cheiro mal e estou num avançado estado de decomposição.
Estou morta, fim de história.
Sei onde estou. Estou num bosque perto da escola. Um bosque onde passei muitas tardes da minha curta vida, sempre na companhia da Luna. A Luna é uma rapariga que pensa demasiado. Eu não ouvi a Luna. E agora estou morta.
Sabes o que dizem. Não és surda. Sabes perfeitamente que, quando passas por ele, pões o teu à escuta. É um reflexo. Já não tens qualquer controlo sobre ele. Os dias passam, uns atrás dos outros, uns iguais aos outros, e tu não consegues parar de ouvir, não consegues parar de sentir aquilo que sentes. E tu achas que a culpa não é tua. Achas que a culpa é dele, por olhar para ti quando passas, por segredar con outros coisas que tu não és capaz de ouvir, mas que tentas, uma e outra vez. Coisas que tu imaginas no teu interior serem lindos comentários à tua indumentária, frases suaves e melodiosas que dizem o quão sedoso está hoje o teu cabelo. Mas são, simplesmente, ideias da tua cabeça, porque, na realidade, tu não sabes nada. Nunca soubeste.
A minha mãe está muita preocupada e deprimida. Já desapareci há cerca de três dias e a polícia continua sem ter nenhuma informação acerca do meu paradeiro. Já interrogaram o Hades, o meu vizinho.
Ele chora, e grita, e chama por Rar, pedindo que este o ajude. Mas Rar não pode ajudá-lo, porque está muito ocupado a alimentar as criancinhas de África. Então, Hades, num último acto de desespero, pergunta ao agente da lei que está a interrogá-lo se este tem filhos. O oficial diz-lhe, muito respeitosamente, que não é a sua família, nem ele próprio, que estão em causa naquele momento, e pede-lhe que se limite a responder às perguntas que lhe forem feitas. Hades diz-lhe que tem uma filha da minha idade, a Juno.
A Juno é uma adolescente de dezasseis anos muito solitária, devo dizer. Quando eu ainda vivia com a minha mãe, quando ainda não estava desaparecida, costumava ver a Juno sempre sozinha, perto da sala vinte e três. Na maioria das vezes, usava duas tranças, que mantinham o seu grande cabelo ruivo no sítio, e umas jardineiras, que a faziam parecer uma menina da primária, assustada no primeiro dia de escola.
Hades diz-lhe que tem uma filha da minha idade, e diz-lhe ainda que, como pai, seria incapaz de fazer mal a uma criança tão viva e brincalhona como eu.
O polícia volta a perguntar-lhe onde é que eu estou. Hades, triste e deprimido, recomeça a chorar, derrotado. Não diz mais nada. Fecha-se na sua concha, e pensa apenas na sua filha, Juno.
Juno. Juno.Juno
O polícia suspira, fecha o dossier, abre a porta da sala de interrogatórios e sai, despedindo-se em silêncio.
Eu sempre gostei do senhor Hades, o meu vizinho.
- Onde vamos? – Perguntei, impaciente.
Apesar de ter um palpite de qual seria o local para nos estávamos a deslocar, senti, por obrigação, que deveria perguntar à Luna para onde nos dirigíamos. Afinal, apesar de eu a conhecer desde que entrei para a pré – primária, onde mordia os outros meninos e lhes tirava coisas como forma de vingança, não podia ter certeza de que ela não era uma assassina psicopata, desejosa de estar a sós comigo para poder espetar-me o seu pica-gelo na minha carótida.
- Sendo hoje dezoito de Novembro, podemos dizer que nos encontrámos no Outono, certo? Portanto, vamos apanhar castanhas. –
Ridiculamente, uma sensação de alívio invadiu-me por completo. Descobrira que, uma parte de mim, acreditava realmente nas ideias absurdas que o meu imaginário conseguia criar. Apesar de sentir que conhecia totalmente a pessoa com quem me encontrava naquele momento, percebi que não podia ter certezas de absolutamente nada. Toda a gente escondia segredos. E ela não era, com certeza, excepção.
Eu sempre gostei do senhor Hades, o meu vizinho.
- Onde vamos? – Perguntei, impaciente.
Apesar de ter um palpite de qual seria o local para nos estávamos a deslocar, senti, por obrigação, que deveria perguntar à Luna para onde nos dirigíamos. Afinal, apesar de eu a conhecer desde que entrei para a pré – primária, onde mordia os outros meninos e lhes tirava coisas como forma de vingança, não podia ter certeza de que ela não era uma assassina psicopata, desejosa de estar a sós comigo para poder espetar-me o seu pica-gelo na minha carótida.
- Sendo hoje dezoito de Novembro, podemos dizer que nos encontrámos no Outono, certo? Portanto, vamos apanhar castanhas. –
Ridiculamente, uma sensação de alívio invadiu-me por completo. Descobrira que, uma parte de mim, acreditava realmente nas ideias absurdas que o meu imaginário conseguia criar. Apesar de sentir que conhecia totalmente a pessoa com quem me encontrava naquele momento, percebi que não podia ter certezas de absolutamente nada. Toda a gente escondia segredos. E ela não era, com certeza, excepção.
- Dás-me um beijinho, dás? –
- Não. –
- Porquê? –
- Porque os rapazes não podem brincar com as raparigas. –
- Eu não quero brincar, só quero um beijinho. –
- Não. –
- Porquê? –
- Porque os rapazes não dão beijinhos às raparigas.
- Mau. –
- Professora, a Ariadne mordeu-me! –
- Não. –
- Porquê? –
- Porque os rapazes não podem brincar com as raparigas. –
- Eu não quero brincar, só quero um beijinho. –
- Não. –
- Porquê? –
- Porque os rapazes não dão beijinhos às raparigas.
- Mau. –
- Professora, a Ariadne mordeu-me! –
Sei que estou no Outono. Só morri há duas semanas. Lembro-me de, no meu último dia de vida, ter ido com a Luna ir apanhar castanhas para fazermos o magusto que todos os anos se realiza na minha casa. Aliás, penso que foi a última coisa que fiz antes de tudo ter acontecido. Além disso, consigo ver à minha volta folhas vermelhas, amarelas, castanhas. Sim, continuamos no Outono. Está frio, o que permite que o meu corpo se mantenha num estado de decomposição bastante atrasado.
Na minha opinião, continuo bastante bonita, tendo em consideração o meu estado recentemente adquirido.
Entras na cafetaria, pensado nas possibilidades do teu dia. Sabes que terás que apresentar aquele trabalho de literatura, sabes que lerás um excerto da aparição, porque a professora já o delineou na última aula, sabes que ele olhará para ti. Hoje não será um dia diferente de todos os outros. Sentar-te-ás perto da porta de entrada, esperando que ele entre. Olharás para o relógio, controlando as horas, sempre com a certeza que não estás atrasada, nem adiantada, porque sabes que és pontual. Esperarás cerca de cinco minutos, e então, aparecerá a Luna, sorridente e ansiosa, que te contará tudo o que fez na tarde anterior, quando não estava contigo. Ouvirás, sempre atenta à porta, sempre à espera que ele apareça, para iluminar o teu dia. Concordarás com ela, fazendo um “hum, hum” e, de vez em quando, um “A sério?”, para que lhe demonstrares que és uma boa amiga, e que te preocupas com aquilo pelo que ela passa. Permanecerás sentada com a Luna, aproximadamente dez minutos e então, ouvirás a porta abrir. Virarás o pescoço na direcção do som, a Luna perguntar-te-á se estás a ouvi-la, e ele entrará.
Majestoso, dono de si mesmo.
A minha mãe telefona à minha família e, um a um, os meus tios, primos, avós, ficam a saber que eu desapareci. Passaram três dias, e nada. A minha mãe está inconsolável. Avisar os meus familiares é um evidente sinal desse desespero. Só numa situação de grande emergência é que a minha mãe se atreveria a entrar em contacto com qualquer um deles.
Na minha opinião, continuo bastante bonita, tendo em consideração o meu estado recentemente adquirido.
Entras na cafetaria, pensado nas possibilidades do teu dia. Sabes que terás que apresentar aquele trabalho de literatura, sabes que lerás um excerto da aparição, porque a professora já o delineou na última aula, sabes que ele olhará para ti. Hoje não será um dia diferente de todos os outros. Sentar-te-ás perto da porta de entrada, esperando que ele entre. Olharás para o relógio, controlando as horas, sempre com a certeza que não estás atrasada, nem adiantada, porque sabes que és pontual. Esperarás cerca de cinco minutos, e então, aparecerá a Luna, sorridente e ansiosa, que te contará tudo o que fez na tarde anterior, quando não estava contigo. Ouvirás, sempre atenta à porta, sempre à espera que ele apareça, para iluminar o teu dia. Concordarás com ela, fazendo um “hum, hum” e, de vez em quando, um “A sério?”, para que lhe demonstrares que és uma boa amiga, e que te preocupas com aquilo pelo que ela passa. Permanecerás sentada com a Luna, aproximadamente dez minutos e então, ouvirás a porta abrir. Virarás o pescoço na direcção do som, a Luna perguntar-te-á se estás a ouvi-la, e ele entrará.
Majestoso, dono de si mesmo.
A minha mãe telefona à minha família e, um a um, os meus tios, primos, avós, ficam a saber que eu desapareci. Passaram três dias, e nada. A minha mãe está inconsolável. Avisar os meus familiares é um evidente sinal desse desespero. Só numa situação de grande emergência é que a minha mãe se atreveria a entrar em contacto com qualquer um deles.
Demorámos praticamente a tarde toda, mas o esforço valeu a pena. Quando terminámos, tínhamos dois sacos cheios. Dois sacos que nos iam permitir ter um magusto recheado.
Caminhámos em silêncio. Não era, de todo, necessário preencher todos os momentos com conversas sem qualquer fim. Não existia qualquer tipo de constrangimento entre mim e a Luna. Assim, estabelecemos simplesmente um diálogo silencioso, e quando dei por mim, estava completamente mergulhada nos meus pensamentos. Por momentos, esqueci-me da presença da minha confidente e deixei-me levar pelas minhas ideias e esperanças, que eram uma das bases que me permitiam continuar a respirar.
Cheira a erva molhada e frutos secos. A minha roupa está encharcada, pois estou deitada sobre uma poça de lama que as chuvas de Outono provocaram. Na realidade, é pouca a roupa que possuiu. Estou morta há duas semanas e estou branca, cheiro mal e estou num avançado estado de decomposição e, apesar de tudo isto, na realidade, a minha única preocupação neste momento é saber razão pela qual fui morta. Porque, neste ponto, é a única duvida que assola a minha mente.
Sem que ele perceba, olharás na sua direcção, observando cuidadosamente o seu belo rosto, avaliando cada sorriso, cada expressão, cada ruga que não existe ainda. Suspirarás, e então, o toque da campainha soará, e, desiludida como sempre, correrás para a primeira aula do dia.
Sais de português, mentalmente cansada, pois o professor Pires é demasiado exigente.
Atravessas a porta, desejando um resto de bom dia ao teu docente, porque a tua mãe te ensinou que é assim que deve ser. Levas os teus livros ao colo, pois no dia anterior deixaste cair a tua mochila num balde de lixívia que a senhora Ísis, a nossa amiga que nos dá uma pequena ajuda de vez em quando nas lides domésticas (não vou dizer que é a nossa empregada, porque Ísis é quase como se fosse da família) estava a utilizar.
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